7 de mar. de 2012

Protesto ou celebração. Ou algo ainda mais profundo?


Um dos criadores do movimento sustenta: “deserção ativa” expressa no ato de pedalar, corrói um sistema de exploração social em cujo centro estão indústria petrolífera e posse de automóvel particular
Por Chris Carlsson, no Vá de bici

Para participar de uma Massa Crítica, você – se tiver uma bicicleta – não precisa comprar nada; nem objeto, nem serviço, nem ideologia; você não precisa nada a não ser o desejo de tomar parte na vida pública, sobre duas rodas. Quando centenas ou milhares de ciclistas tomam as ruas tal qual convivas utilizando o espaço público de forma celebratória, muitas das expectativas e regras do capitalismo moderno são desafiadas. Comportamentos individuais escapam à lógica do comprar e vender, ainda que apenas por algumas horas. Uma vez nas ruas, conexões inesperadas emergem, coisas não planejadas acontecem, relacionamentos bacanas iniciam por acaso. Diferentemente de uma ida ao shopping ou ao mercado, as conversas estão livres do jugo da lógica das transações, dos preços, das  medidas. É um intercâmbio livre, entre pessoas livres. A experiência altera nossa percepção do viver citadino imediatamente e, mais importante que isso, mexe com nosso imaginário coletivo de maneiras que estamos recém começando a aprender.

Ciclistas em uma Massa Crítica estão entre os praticantes mais visíveis de um novo tipo de conflito social. A “deserção ativa” expressa no ato de pedalar, corrói o sistema de exploração social organizado através da indústria petrolífera e da posse de automóvel particular. Ao pedalar em centros urbanos do Império, nós nos juntamos a um crescente movimento mundial que está repudiando os modelos econômicos e sociais controlados pelo capital multinacional e impostos a nós sem qualquer forma de consentimento democrático. A tomada das ruas, em massa, por um enxame de ciclistas “sem líderes” é exatamente o tipo de lógica de entrelaçamentos sociais auto-dirigida que está transformando nossas vidas, do ponto de vista econômico, e ameaçando a estrutura de governo, de negócios, bem como a estrutura policial e bélica (algo que os estrategistas militares mais imaginativos estão começando a entender).

A Massa Crítica tem uma nova prima na cidade: a San Francisco Bike Party [Festa da Bicicleta de São Francisco, doravante abreviada SFBP]. Esse caráter festivo sempre esteve presente na Massa Crítica; mas o modelo Festa da Bicicleta, tal como foi desenvolvido em San Jose e outras cidades, tem como ponto de partida uma equipe de organizadores (e monitores) voluntários que conduz a diversão. A primeira SFBP aconteceu em uma gélida noite de 7 de janeiro de 2011, e atraiu 1000 ciclistas, apesar do frio intenso. Foi muito parecido com a Massa Crítica, em alguns aspectos: eu curti muitas conversas com pessoas que estavam perto durante a pedalada, havia música, e vibrações amigáveis dos ciclistas bem como dos passantes. Éramos dúzias e centenas de ciclistas preenchendo as ruas no lugar de automóveis, exatamente como sonhávamos durante os primeiros meses da Massa Crítica, lá em 1992.

A Massa Crítica é, ou parece ser, politizada. Mas vamos combinar: sua política é relativamente difusa ou inarticulada; ou talvez seja algo tão plural que não possa ser resumido facilmente em um único conjunto de idéias. A Festa da Bicicleta [SFBP], por outro lado, é declaradamente apolítica, um pouco obcecada com a obediência às regras de trânsito, e – considerando os freqüentes berros de “Festa da Bicicleta!” durante o passeio – acaba estabelecendo uma concepção bastante rasa e vazia do que seja “diversão em bicicletas”.

Mais interessante, talvez, é a liderança informal que se movimenta nos bastidores tanto da SFBP quanto da Massa Crítica. Existe uma linha de continuidade entre a SFBP – com seu comitê organizador e seus “pássaros” (monitores) – e as Massas Críticas mais recentes, ‘da pesada’[hardcore], “sem líderes”, lideradas por anarquistas. Entre os dois extremos – em um papel decididamente imoderado – estão alguns de nós, que gostamos de ambos eventos, por motivos parecidos, mas temos nossas diferenças com ambos, também. Nós não queremos pessoas nos mandando ir para a faixa da direita, de maneira prepotente, ou dando ordem de parar em semáforo quando não há necessidade, ou num ponto de parada obrigatória quando não há tráfego transversal. Como disse um amigo: “não faço isso na minha vida normal, por que faria em uma Festa da Bicicleta?

O que motiva os organizadores e monitores da Festa da Bicicleta? Teriam eles uma necessidade de assegurar que um grupo de pessoas obedeça seus padrões de comportamento? Sabemos que há muitos ciclistas altamente comprometidos com o “bom comportamento e observância às lei”, e que defendem ser este o padrão segundo o qual ciclistas de todos os tipo devem ser julgados.  A SFBP recém começou, é provável que cresça muito, e atraia a atenção da polícia. Quando os organizadores começarem a negociar com a polícia, não vai demorar muito para que esta resolva determinar o que é aceitável e o que não é, em termos de trajetos, paradas e velocidade. Como vai ficar a diversão da Festa da Bicicleta quando os “pássaros” se tornarem óbvios guardiães das preferências policiais?

Dito isso, a primeira SFBP estava de fato muito divertida, e sua auto-disciplina era um espetáculo à parte. Aqui e ali, quando surgia a possibilidade de conflito com algum motorista ou ônibus que precisava passar, as pessoas educadamente faziam espaço. Ninguém furou um sinal vermelho ou avançou contra o tráfego transversal. Nada disso exigiu monitoramento; aconteceu naturalmente, a partir das preferências dos ciclistas.

Interessante observar que esse tipo de cortesia, emanada do bom-senso, poderia ser adotada pela Massa Crítica, de forma rotineira (isso já acontece, mas de forma esporádica); reduzindo assim a tensão e aumentando o prazer na pedalada para a maioria das pessoas. Alguns de nós articulamos esta abordagem e argumentamos em seu favor, em panfletos bem como na Rede, durante anos. Mas nós não queremos ser monitores e não queremos impor nada a ninguém. Nós gostaríamos que as pessoas se comportassem de maneira bacana e respeitosa, porque elas querem fazer isso, e porque isso é mais subversivo do que mostrar raiva e atitude confrontacional!

A Massa Crítica sempre se caracterizou como algo radicalmente democrático. No espaço público de nossas ruas, as pessoas presentes traçam seus próprios destinos segundo a maneira como interagem umas com as outras e com os passantes, coisa que pode ser profundamente democrática – não no sentido de votação onde a maioria ganha, que geralmente aceitamos como definição de democracia – mas no sentido diretamente democrático de participação aberta e não-mediada. Em outros sentidos, a Massa Crítica nunca foi “democrática”: poucas pessoas influenciam a escolha do trajeto (ainda que, em princípio, qualquer pessoa possa exercer influência a cada edição do passeio) e menos pessoas ainda causam conflitos, ao pedalar na contramão ao lado da Massa, ou adiantando-se ao grande grupo e guinando subitamente contra o trânsito transversal.

Nos primeiros anos, trajetos eram propostos e “votados” através da contagem aproximada de mãos erguidas, antes do início do passeio, na Peewee Herman Plaza. Algumas dúzias de pessoas, apenas, conseguiam participar nesse processo, mesmo que houvessem centenas presentes às imediações. Na prática, cada passeio é conduzido pelos ciclistas mais convincentes e assertivos dentre aqueles que se posicionam à frente do grupo. Desde o ataque policial de 1997 – que levou a um grande declínio na comunicação escrita entre os ciclistas (a tão propalada “xerocracia” parece ter se atrofiado) – não houve mais do que uma dúzia de propostas de trajeto, ao longo de igual número de anos. Resultou disso que muitas pessoas que não vivenciaram a Massa Crítica nos anos 90 se tornaram ideologicamente compromissadas com os conceitos “não há trajetos propostos” e “não há líderes”.

Alguns dentre essas mesmas pessoas parecem crer que a Massa Crítica é um “protesto” e que o sentido da coisa é ocupar vias arteriais importantes, de maneira a bagunçar [screw up] o trânsito o mais possível. Às vezes se pode ouvir essas pessoas resmungando, quando o passeio se dirige para o sul, ou muito para oeste, e clamando que deveríamos voltar para a área central, para poder cumprir sua abordagem tática. Dessa maneira esquisita, eles/elas ESTÃO liderando a Massa Crítica, mas sem explicar sua idéia, nem como esse proceder poderia efetivamente levar ao cumprimento de sua não-declarada “missão”. Isso revela essa realidade peculiar, auto-governada, da Massa Crítica: lideranças improvisadas [ad-hoc] tomam decisões importantes que influenciam a experiência que todos estão tendo, mas não dão satisfações a ninguém a não ser a eles mesmos.

É aí que alguns de nós, veteranos,  ficamos coçando a cabeça. Quem disse que a Massa Crítica é um “protesto”? Ser um ciclista antagônico não é contraproducente? O que está havendo em algumas subculturas juvenis cujos membros acham que é realmente radical ‘aprontar’ [to act out] e causar brigas com pessoas que não pensam como eles nem têm a mesma aparência? Não seria mais radical tentar tornar essas pessoas aliados ativos na luta por uma vida melhor? E o estilo de vida convencional [“mainstream”], dependente do automóvel, contra o qual os radicais protestam, não é inerentemente pior do que poderia ser? Não queremos convidar aqueles que estão assim aprisionados a se juntar a nós, ao invés de dar-lhes motivo de nos odiarem?

Em algumas cidades, a polícia conseguiu com sucesso parar a Massa Crítica, talvez porque os ciclistas não tenham conseguido ser tão criativos com o passeio e sua lógica. Em Austin, Texas, e Minneapolis, Minnesota, e até mesmo em Manhattan, a polícia agrediu e prendeu ciclistas, conseguindo assim desencorajar muitas pessoas a participar. Em Portland, Oregon, uma cidade muito pró-bicicleta, a Massa Crítica se extinguiu quando a cultura se tornou demasiadamente dominada por homens jovens e raivosos (em São Francisco nós os chamamos “A Brigada da Testosterona”) que pensam que existe uma “guerra de classes” entre carros e bicis. Eles fazem um esforço extra para bloquear carros, escarnecer e provocar motoristas, especialmente os que estão em carros dispendiosos. Aqueles que fazem essas coisas sentem orgulho disso e crêem estar levando as coisas às últimas conseqüências; mas, para o resto de nós, eles parecem apenas covardes se escondendo na multidão.

Objetos inanimados não têm luta de classes; ver as pessoas dentro dos carros como inimigos é um enorme erro político. Motoristas não são o inimigo, e sim nossos aliados naturais! Esse pessoal, preso no trânsito, dentro de carros ou ônibus, são claramente mais parecidos do que diferentes dos ciclistas que estão temporariamente alterando o ritmo da vida urbana ao tomar as ruas pedalando. O objetivo [the point] da Massa Crítica, na minha opinião sempre foi criar um espaço celebratório convidativo que seja tão contagioso que pessoas que ainda pedalam pouco sejam atraídas, de maneira irresistível, e queiram experimentar aquilo.  Se você ofende pessoas ou tenta fazê-las se sentir culpadas ou constrangidas, existe pouca chance de que elas venham a mudar a maneira como pensam e, por conseguinte, mudar seu comportamento. Nosso prazer é mais subversivo do que nossa ira e, para muitos, é difícil lembrar disso no calor das ruas.

É fácil esquecer que uma das melhores coisas a respeito da Massa Crítica é que ela põe centenas ou mesmo milhares de nós juntos nas ruas, onde as regras e a etiqueta nem sempre são claras. Isso significa que nós temos que resolver os problemas que surgem através do diálogo, vamos acertando/superando as coisas no calor do momento, e com isso adquirimos importante prática em auto-organização política e autogerenciamento.

Nos EUA, durante as últimas duas décadas, houve uma Guerra Cultural muito séria que definiu a sociedade; fundamentalistas cristãos de direita ousaram cada vez mais tentar controlar o comportamento do resto da sociedade. Do outro lado estão milhões de pessoas que preconizam um alto nível de liberdade e tolerância, e você pode encontrar muitas das pessoas mais ardorosas e articuladas desse grupo pedalando na Massa Crítica.

Existe tensão, de fato, entre valores diferentes que se digladiam tentando influenciar essas pedaladas em massa. Uma grande parte dos participantes provavelmente não está nem aí, desde que tenham um passeio divertido todo mês. Não há problema nisso, mas se deixarmos essas questões mais profundas de lado, nós não estaremos correspondendo a nossas próprias expectativas. Quaisquer que sejam nossas preferências pessoais, nem a Massa Crítica, nem a SF Bike Party estão se saindo bem em comunicar aos passantes o significado mais profundo de sua existência. Podemos não gostar de tudo que acontece a cada passeio, mas será que a gente não deveria se puxar mais, tentar influenciar a cultura que compartilhamos, debatendo abertamente nossos comportamentos, nossas “mensagens” (ou a falta delas) e nosso propósito?

Chris Carlsson
título original: Protest or celebration? Or Something Deeper Still?
extraído do blog Nowtopia; primeiramente distribuído pelo autor como panfleto na Massa Crítica de S. Francisco em 28 de janeiro de 201

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