Socialmente falando, não faltam motivos para que muitas pessoas se sintam descontentes com suas vidas - e a reversão deste estado invariavelmente se obtém por ação própria. Equidade de gênero, igualdade étnica e contrato de trabalho não resultaram do coração mole de alguns membros das categorias beneficiadas, mas de pressões, por diversos meios e durante longo período, exercidas pelas pessoas que pertencem às categorias subjugadas. Dizemos que tais pessoas atuam para romper padrões e modificar crenças, ao invés de permanecerem inertes e conformadas com a cultura preponderante. Dentre essas pessoas que atuam - e grupos por elas compostos -, algumas refletem sobre esse fazer, compreendem a função deste estado ativo e alertam as demais sobre os efeitos inconvenientes da passividade - por isso dizemos que são ativistas.
Assim acontece com o ciclismo. Milhões de pessoas pedalam diariamente, ocupando o espaço público e, muitas vezes, confrontando com motoristas que se pretendem - amparados por um imaginário e pela omissão do poder pública em desconstruí-lo - proprietários das vias públicas. A maior parte deles pedala por necessidade ou simplesmente por gosto, pedala "naturalmente" e não pensa ou conversa sobre democratização do trânsito, direitos dos mais vulneráveis ou coisas tais, e suas manifestações não vão além de xingar um prevalecido qualquer ou praguejar contra um buraco na rua.
Mas dentre os ciclistas temos aqueles que pedalam afirmativamente: são sabedores de que o trânsito é um espaço de relações sociais, são conhecedores da legislação e são conscientes de que andar de bicicleta contribui para a qualidade de vida urbana, para a diminuição da pressão sobre os recursos naturais e para o próprio bem estar físico e mental. Muitos deles ainda possuem ou têm condições de possuir um veículo motorizado, mas dele abrem mão em favor de princípios de igualdade social e de sustentabilidade ambiental ou por não tolerarem uma academia de ginástica.
Dentre estes ainda encontramos alguns que manifestam seus pontos de vista em seus círculos de relacionamentos, escrevem para jornais ou para a prefeitura requerendo a garantia de direitos ou ainda comparecem a audiências públicas e outros espaços de participação cidadã para tentar influir nas políticas públicas. Recortando mais ainda, encontramos um grupo menor, de pessoas que fazem tudo isto, mas que buscam seus pares ciclistas-afirmativos-manifestantes para atuarem conjunta e organizadamente.
É este o cicloativista. O cicloativista usa a bicicleta sempre que possível, o faz para ocupar um espaço que lhe é de direito e para demonstrar que sua escolha não se dá apenas em benefício próprio e procura outras pessoas que pensam e agem de forma similar para, em conjunto, ocupar todos os espaços disponíveis para alcançar mais rápida e autenticamente não apenas sua inclusão no trânsito, mas seu direito à cidade. Ou seja, o cicloativista afirma sua atividade de influência social.
É óbvio, o cicloativismo não é um bloco homogêneo. Pra começar, nem todos assumem ou gostam, por variadas razões, do termo. E ainda abundam os métodos de atuação, as visões de mundo e mesmo o cumprimento dos compromissos internamente assumidos. De consumistas a ecologistas, de "antipolíticos" (há quem acredite que isso é possível) a politizados, de atléticos a relaxados, de todos os bolsos e credos, os cicloativistas convivem como qualquer outro grupo socialmente ativo na história: em movimento. O cicloativismo se insere na corrente dos novos movimentos sociais, formados em torno de identidades de sentimentos e de anseios não contemplados (de etnia, gênero, perspectiva cultural, propriedade, ligação com a natureza etc., vinculados ou não com a estrutura econômica) - e não raramente neles se pode encontrar contradições e incoerências.
Mas é possível afirmar convictamente que a este conjunto - que nem é tão recente nem começou no Brasil - pode-se atribuir a responsabilidade pelo trânsito ainda não ter virado um inferno consumado. Pedalando no dia-a-dia, organizando bicicletadas e passeios ciclísticos, escrevendo em blogs e buscando a TV, introduzindo a temática em rodas diversas, apresentando Projetos de Lei, fotografando, requerendo, denunciando, pesquisando e palestrando os cicloativistas, mesmo sem o conhecimento ou sem o apoio de todos os ciclistas, mantém o assunto em debate no cenário cultural, político, econômico e técnico-estrutural.
E obtendo uma cicloviazinha aqui e outra acolá, uma sentença judicial de vez em quando ou um estimulante sorriso ou buzinada de apoio, vão deixando seu rastro de contribuição civilizacional, onde encontram alguma razão para acreditar que se não for pelo bom senso, será pelo caos e pela crise que as cidades terão de fazer da mobilidade ciclística mais do que um elemento tolerado ou um enfeite urbano.
Artigo originalmente publicado na Revista Bicicleta - Ano 1, nº 12 - Dez/2011 - Pag. 28-29
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