Por André Geraldo Soares
O que desejamos, nós leitores dessa revista, é que o mundo seja seguramente ciclável. O mundo, não somente os aglomerados urbanos, não somente este país: quem acha que a bicicleta "é do bem", não deve desejá-la para todos? Seguramente, porque em quase toda estrada, pavimentada ou não, é possível passar com uma bicicleta, mas na maior parte delas essa ação deve ser avaliada em uma escala que vai do "um pouco arriscado" ao "extremamente perigoso".
Essa avaliação leva em consideração a experiência, a destreza e a capacidade física do pedalante; o tipo, a qualidade e a condição mecânica da bicicleta; a quantidade e a velocidade de veículos motorizados e o respeito dos seus condutores; e, é claro, a infraestrutura para a segurança do ciclista adequada às características da via pública.
Resumindo: não se pode insuflar qualquer um a pedalar em qualquer lugar de qualquer modo com qualquer bicicleta... Para ser bem honesto, junto com o desfile dos benefícios do pedalar, o cicloentusiasta precisa passar algumas recomendações para o cicloiniciante. Uma vez que não é difícil vermos cicloveteranos fazendo barbaridades com a magrela, não podemos admitir que somente a quantidade de horas de pedal habilita qualquer um a ser orientador do uso seguro da bicicleta.
Existem vários textos, manuais, panfletos, de diversas qualidades, contendo tais recomendações, por isso não cabe a este artigo elencá-las. Advirta-se apenas que é preciso tomar cuidado com certos materiais, muitos deles oriundos de órgãos de trânsito, que parecem tratar de um imaginário mundo cheio de ciclovias e de faixas de pedestres e que só servem para limpar a consciência dos carrocratas que os escreveram. Por isso o mais acertado é buscar informações com aqueles que pedalam, dentre os quais encontramos, disponíveis na internet, a Escola de Bicicleta e o Vá de Bike. Faça sua pesquisa.
Para chegar inteiro ao destino e ao mesmo tempo sentir prazer ao pedalar é bom escolher uma bicicleta adequada ao seu tamanho e aos seus propósitos, mantê-la em boas condições, dotá-la de uma sinetinha, de refletores e de luzes para o uso noturno; portar um capacete - e quem sabe vestir um par de luvas - para aumentar a sensação de segurança; usar roupas claras e confortáveis, que conferem mais visibilidade e liberdade aos movimentos; e, é claro, escolher as ruas menos movimentadas, pedalar no sentido do tráfego ("pela mão"), estar atento às manobras alheias e sinalizar as próprias.
Preocupar-se consigo próprio é fundamental quando se está no trânsito, mas insuficiente se a intenção é que um dia possamos pedalar mais relaxados. É preciso considerar os aspectos sociais do ato de pedalar para criarmos condições de que mais pessoas possam aproveitar a bicicleta e, com isso, humanizar as relações no trânsito e tornar o ar mais respirável. Pois do jeito que está, todos sabemos, a bicicleta é para poucos.
Em primeiro lugar, conhecer, respeitar e exigir o cumprimento da legislação - os direitos e deveres de todos os veículos em via pública. A bicicleta tem prioridade no trânsito - leia o Código de Trânsito Brasileiro -; portanto, se o Estado não obriga o cumprimento da lei, educada mas firmemente temos que fazer os motoristas compartilharem a via pública com os ciclistas.
Isso se consegue no próprio trânsito, pedalando - para demonstrar que a bicicleta é viável e para atrair mais pessoas para a modalidade -, sempre mantendo atitude responsável e com dignidade em relação aos demais veículos, mas também, sempre que possível - e, não nos iludamos, tem que ser possível -, fora dele. É a organização dos próprios ciclistas que tem introduzido o debate na sociedade, mas o debate ora acumulado ainda está longe de se tornar reforma infraestrutural, programa educativo ou prisão para os criminosos de trânsito. Trata-se, ainda, tão somente, pelo status quo, de uma concessão mínima de direitos. O ordenamento jurídico, a pressão das corporações e o confortável privilégio do indivíduo compõem uma estrutura firme, que não cederá facilmente à formosura e à economia barata da bicicleta.
O trânsito ainda é regido pela lei do mais forte, tal como acontece na selva (sem entrar no mérito do antropocentrismo dessa comparação). Se o que queremos é mais do que competir na selva, não resta outra saída senão comportar-nos como civilizados que dizemos que somos capazes de ser: refletir, dialogar, decidir e agir coletivamente pelo bem comum, usando, para isso, os espaços democráticos disponíveis, mas cientes de que tantos outros espaços - o parlamento, as secretarias de obras e de planejamento etc.- precisam ser democratizados para que a rua seja "des-selvagizada".